Poemas de Miguel Torga
Música por Lavoisier – Roberto Afonso e Patrícia Relvas
Retratos sonoros e theremin: João Bento


Orquestra Fantástica do Futuro de Vila Real:
Helena Liberato (flauta transversal)
Pedro Miranda (saxofone barítono)
Nuno Martinho (saxofone alto)
Paulo Dias (clarinete)
João Mafra (bateria)
Raúl Eira (vibrafone e percussão)
Carolina Silva (piano)
Alexandra Varela (piano)


Técnico de som: José Fortes


Convite feito pela Cooperativa Cultural Transa e Covilhete na mão
Apoiado pela Fundação GDA
Editado pela Armoniz
Apoio do Conservatório Regional Música de Vila Real
e Espaço Miguel Torga


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“Viagem a um Reino Maravilhoso” é o novo disco e espetáculo de Patrícia Relvas e Roberto Afonso. A partir de poemas de Miguel Torga, “Viagem a um Reino Maravilhoso” é um álbum conceptual feito para duas vozes, uma guitarra e várias frequências que, segundo o grupo, “traduz o som encontrado na poesia do escritor”. Composto por oito temas, onde sete são poemas musicados, o
disco foi gravado e misturado por José Fortes, considerado como um dos técnicos de som mais importantes da música portuguesa e responsável por trabalhos de artistas como Carlos Paredes, José Mário Branco, Fausto, Sérgio Godinho, Banda do Casaco ou Mão Morta.

Construído a partir de residências artísticas em Trás-os-Montes, com sessões de gravação em diferentes locais, como o Espaço Miguel Torga, um centro de interpretação da vida e obra de Torga situado na sua terra-natal, São Martinho de Anta, e ainda no Conservatório Regional de Música de Vila Real, tendo a participação de alunos desta estrutura de ensino em dois temas e onde se apresentam com Orquestra Fantástica do Futuro de Vila Real. O álbum conta também com retratos sonoros do artista e sonoplasta português João Bento, que captou sons em diferentes territórios de importância para Miguel Torga. O álbum tem o apoio da Fundação GDA e a chancela editorial da Armoniz, editora de Miguel Augusto Silva que até ao momento se dedicou apenas à reedição de discos históricos da música portuguesa, como o álbum homónimo dos Quarteto 1111 ou de “Blackground” dos Duo Ouro Negro. O disco é uma edição exclusiva em formato vinil, capa serigrafada e limitada a 300 exemplares.

Com este disco e espetáculo, os Lavoisier pretendem “partilhar a arte do poeta e escritor Miguel Torga, beber dos pensamentos que lhe passaram pela pele, com a missiva de dar continuidade, e ter o dever de não deixar morrer, de cuidar e avisar, de avivar e de o celebrar”.

Miguel Torga é o pseudónimo de Adolfo Correia Rocha, escritor e poeta nascido a 12 de agosto de 1907 em São Martinho de Anta, vila do concelho de Sabrosa, Vila Real. Indicado por diversas vezes para Prémio Nobel da Literatura, é considerado como um dos mais influentes poetas e escritores portugueses dos século XX e foi o primeiro escritor a receber o Prémio Camões, o mais importante título literário e cultural da língua portuguesa. Faleceu em Coimbra a 17 de janeiro de 1995, onde exercia medicina.

VIAGEM A UM REINO MARAVILHOSO

MIGUEL TORGA

Na terra onde nasci há um só poeta.
Os meus versos são folhas seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada.
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.

Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!

in Diário VII, 1956

Não saibas: imagina…
Deixa falar o mestre, e devaneia…
A velhice é que sabe, é apenas sabe
Que o mar não cabe
Na poça que a inocência abre na areia.


Sonha!
Inventa um alfabeto
De ilusões…
Um á-bê-cê secreto
Que soletres à margem das lições…
Voa pela janela


De encontro a qualquer sol que te sorria!
Asas? Não são precisas:
Vais ao colo das brisas,
Aias da fantasia…


in Diário IX, 1964

Aparelhei o barco da ilusão
E reforcei a fé de marinheiro.
Era longe o meu sonho, e traiçoeiro
O mar…
(Só nos é concedida
Esta vida
Que temos;
E é nela que é preciso
Procurar
O velho paraíso
Que perdemos.)


Prestes, larguei a vela
E disse adeus ao cais, à paz tolhida.
Desmedida,
A revolta imensidão
Transforma dia a dia a embarcação
Numa errante e alada sepultura…
Mas corto as ondas sem desanimar.
Em qualquer aventura,
O que importa é partir, não é chegar.


in Câmara Ardente, 1962

Lírios, já não, que me parecem luzes
De luto.
Rosas, pior, que são a burguesia
Das flores
No apogeu.
Tojos arnais, apenas.
Cilícios vegetais
Sobre a fonte de quem
Tem nojo das carícias do presente.
Tojos arnais, até que possa alguém
Ser poeta e ser gente.


Miguel Torga in Cântico do Homem, 1950

Apetece cantar, mas ninguém canta.
Apetece chorar, mas ninguém chora.
Um fantasma levanta
A mão do medo sobre a nossa hora.


Apetece gritar, mas ninguém grita.
Apetece fugir, mas ninguém foge.
Um fantasma limita
Todo o futuro a este dia de hoje.


Apetece morrer, mas ninguém morre.
Apetece matar, mas ninguém mata.
Um fantasma percorre
Os motins onde a alma se arrebata.


Oh! maldição do tempo em que vivemos,
Sepultura de grades cinzeladas,
Que deixam ver a vida que não temos
E as angústias paradas!


in Cântico do Homem, 1950

Foi bonito
O meu sonho de amor.
Floriram em redor
Todos os campos em pousio.
Um sol de Abril brilhou em pleno estio,
Lavado e promissor.
Só que não houve frutos
Dessa primavera
A vida disse que era
Tarde demais.
E que as paixões tardias
São ironias
Dos deuses desleais.


in Diário XV, 1990

Terra, minha medida!
Com que ternura te encontro
Sempre inteira nos sentidos,
Sempre redonda nos olhos,
Sempre segura nos pés,
Sempre a cheirar a fermento!
Terra amada!
Em qualquer sítio e momento,
Enrugada ou descampada,
Nunca te desconheci!
Berço do meu sofrimento,
Cabes em mim, e eu em ti!


in Diário XI, 1973